Páginas

quarta-feira, 7 de março de 2012

Espetáculo no ônibus...



Não era um dia comum. O ônibus estava parcialmente cheio, mas havia espaço suficiente para que cada passageiro em pé pudesse existir em paz durante o trajeto. E estes ficavam felizes porque, em dias assim, seus três reais adquiriam a capacidade não só de pagar a passagem mas também o espaço.

Mas aquele era um dia diferente e todos ali sabiam disso. E, embora felizes, usavam suas máscaras introspectivas. Ora ou outra havia algum louco que, em dia de chuva, transcrevia nos vidros os pensamentos de um momento insano e tinha a capacidade de atrair para si olhares de reprovação. Ônibus é lugar de cada um ficar na sua, sem chamar atenção e se, por acaso, quiser participar de um momento de escape, esse deveria ser solitário e silencioso. Sem testemunhas. Uma atuação dentro de si com um único telespectador: o próprio que apresenta o espetáculo.

Passageiros, em pé ou sentados, empenhavam seus papéis; mas a vida, pra rir um pouco, decidiu pelo inesperado só pra saber quem ali saberia improvisar.

De repente, num ponto também incomum, uma passageira decide descer. E, bem, não era uma passageira qualquer porque ela estava sentada e deixaria um lugar vago. Rapidamente, todos os assentos transformam-se em cadeiras feitas especialmente para presenciar a cena que se segue.

As cortinas se abrem. Uma luz recai sobre o assento vazio. O ônibus retoma sua atmosfera e seis pessoas se veem obrigadas a improvisar. Improvisam sua exasperação forçada por um lugar que todos ali poderiam muito bem viver sem, obrigado. Um minuto se passa e o lugar continua vago. Algumas das cadeiras especiais percebem e riem - disfarçadamente, claro. O espetáculo vai ser divertido hoje.

As seis pessoas, por ironia, estão relativamente em pé de igualdade em relação a distância do assento, que agora parece brilhar. Lá fora, um sol escaldante e os seis percebem, uns mais cedo, outros nem tanto, que aquele lugar está na sombra. Passam então a observar uns aos outros, com discrição. A plateia vê que seus três reais se multiplicaram: pagam passagem, espaço e diversão num espetáculo improvisado. Não rir passa a ser tarefa quase impossível, mas se esforçam e alguns até já têm seu preferido.

Cinco minutos se foram e a vida, pra deixar mais divertido, não deixará entrar ou descer outro passageiro por um tempo. Uma moça, no auge de sua indiferença, é a primeira a desistir do lugar. Pega um livro e se concentra nele. Restam cinco. Sem que ninguém saiba já há mais dois rapazes que decidiram esnobar o assento. Não, estes não se sentarão. Restam três e 10 minutos se passaram.

Parte da plateia que vê seus preferidos recuarem e começa novas apostas. Mas a vida queria rir hoje e queria rir muito, por isso deixa um passageiro entrar. Novamente quatro, mas o novo passageiro apesar de não demorar muito para entender o que se passa demora para decidir: Sentar ou não sentar: eis a questão. E ele decide que não pode disputar o lugar. É o 4º a desistir e 15 minutos se passam. Impressionante. Quando, de repente, engarrafamento. A plateia desaba em risos. Não, não há motivo para estresse algum.

—Hahahaha.

Percebem, então, que dos três, dois acreditavam aguentar firme até seus respectivos destinos e, ao verem suas expectativas frustradas pelo trânsito, voltam a concorrer. Quase 18o minutos de diversão se passam até que o rapaz de blusa social azul clara decide encerrar o ato e senta-se. E a vida, pra dar mais uma prova de que aquilo era comédia, faz com que os sinais fiquem verdes e o engarrafamento pareça ser mito de algum planeta inabitado situado em alguma galáxia qualquer da imaginação humana. O ponto do rapaz de blusa social azul clara é aquele. E ele desce escondendo o rosto atrás da mochila.

A plateia ri freneticamente , nem se dá mais ao trabalho de fingir qualquer coisa. Aquilo, deixam claro, é comédia e nunca, nunca fora drama ou suspense e, pelo visto, estava longe de ser ação.

—Hahahahahahahahaha!!!

Os dois passageiros em pé que disputavam o lugar, uma garota de bolsa vinho e um rapaz, se olham e , estupefato, ele percebe que ela estava disposta a prolongar tudo aquilo. Ele ri, e a plateia não percebe porque ele riu com os olhos. E senta-se ao perceber que só restava uma pessoa que realmente queria o lugar. E essa pessoa era ele.
.
Nos pontos que se seguem todos os desistentes encontram seu rumo. As apostas já foram encerradas e os vencedores repartem o prêmio rumo ao ponto final. Dos que disputaram permanecem no ônibus apenas o rapaz que realmente quis sentar-se e a garota de bolsa vinho que, apesar de todos os lugares que vagaram, escolheu ficar em pé. Porém foi somente nessa última parte do trajeto que a plateia e o rapaz que realmente quis sentar perceberam que, por todo o espetáculo, a garota também fora plateia. Mas o que nunca vão saber é que, desde o começo, ao invés de apostar num vencedor, ela escolhera observar para escrever tudo depois.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Olhos de gata à meia-noite...



A gata desfila pela casa como uma rainha. Senta-se, observa e nada escapa a sua atenção. Senta-se num chão que carrega em si marcas de dias iguais, marcas perceptíveis na sujeira que não se dá mais ao trabalho de esconder-se sob o tapete e fica a vista de todos, inclusive da própria gata.

O mesmo chão pisado por pés sem rumo, que seguem apressadamente para lugar algum, que vagam pela casa, que vagam pelo olhar da felina que, religiosamente, senta-se disposta a cumprir sua tarefa. Tudo observa a gata e ela tudo observa de volta.

Perto das 7h ela dorme no quarto quente e passeia um passeio sonâmbulo quando pensam que ela acordou. Ventilador, televisão, parede, mala e chão: tudo na casa pensa enquanto humanos dormem.

Quando metade do dia se vai a gata vai também. Vai pro lado, pra encenarem a limpeza do chão. E a felina cumpre seu papel com maestria, sendo ela a única que não precisa fazer-se atriz. Ela incorpora seu papel e vai pro lado.

Mas sempre, sempre perto das 22h, a gata pára feito estátua, senta-se e observa. Observa com olhos cansados de ver, dia após dia, a mesma coisa vaga e vazia impressa na rotina de encenação que ela se põe a observar. E a participar.

Perto das 23h ela busca nos lados alguma resposta minimamente convincente pra inércia que invade todos aqueles que observa. Não encontra nada. Os objetos e móveis da casa sussurram hipóteses erradas na esperança de, um dia, desvendar tal enigma. Mas não há razão para pressa. Amanhã a gata tudo fará novamente e todos terão outra oportunidade para errar.

Agora a gata deita-se. Vai restabelecer-se pois precisa desfilar feito rainha amanhã e a casa é grande, o esforço é grande... E então chega a hora de não tirar os olhos de mim e o relógio soa meia-noite.